“Esta data joga luz para que alguns nos enxerguem”, diz egresso transgênero da URI sobre visibilidade trans
31/01/2022 11:05 em Educação

“Esta data joga luz para que alguns nos enxerguem”. A afirmação é do egresso de Educação Física, do câmpus de Santiago, Lucca. Ele é um homem transgênero e concluiu a graduação pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI), no ano passado.

Entre os estudantes matriculados com nome social na URI, Lucca é um dos apenas quatro alunos que se formaram pela instituição, no período de 2003 a 2021, segundo cadastro interno. Os números podem apontar uma das muitas barreiras enfrentadas por pessoas trans: dificuldade para acessar uma graduação e concluir os estudos. A data de 29 de janeiro é lembrada como Dia da Visibilidade Trans e a Reitoria aproveita para abordar o papel da educação no processo de inclusão.

“Infelizmente pela negligência nas escolas, muitos trans param de estudar. Por isso que nem chegam a ingressar numa universidade. A escola se diz democrática, mas proíbe e corta muitas pautas como esta. É importante demais falar sobre gênero e sexualidade nas escolas, só assim vamos mudar a forma como a sociedade nos enxerga”, defende Lucca.

O professor doutor do curso de Psicologia da URI, câmpus de Santiago, Izaque Machado Ribeiro, concorda que não são poucos os desafios dentro da educação. Com o título Cidadanias precárias: sujeitos trans e educação, o professou analisou em sua tese de doutorado, a trajetória de vida de pessoas trans e o quanto são marcadas por processos de exclusão e negação das suas identidades.

“Eu escutei sete pessoas trans sobre como foi a trajetória educacional, as experiências, entender o trans, como foi isso junto a família, a escola, a universidade e todas as história, trazem a marca da transfobia estrutural. Todas falaram das barreiras e muito sofrimento, quando se assumem e quando se apresentam nas escolas. Muitas vezes os professores não estão preparados ou não têm uma formação adequada que faça com eles acolham esta diferença nas salas de aula.”

O professor Izaque e alguns estudantes de psicologia da URI foram responsáveis por parte do acolhimento que Lucca encontrou na universidade. “Sempre que tinha algum evento da psicologia relacionado ao assunto, eu estava no meio. Entrei para a graduação com 17 anos, ainda como uma mulher lésbica, mas isso o pessoal, a meu ver, tratava com muita naturalidade. Com o passar do tempo fui me identificando como um homem trans e todos ali acompanharam a minha transição de perto e sempre procuraram saber mais e aprender junto como era o processo.”

Medidas inclusivas

Durante a pesquisa, o professor doutor identificou que muitas pessoas que realizaram a graduação, precisaram lançar mão de estratégias para encontrar o próprio espaço. “É preciso conversar com os professores, a direção, tomar atitude.”

Lucca concorda que os professores têm papel primordial no processo de inclusão. “É necessário fazer reuniões ou palestras com os professores. Quem segura o aluno na sala de aula é o professor. Se ele souber acolher e passar isso para os demais alunos, já vai ser um passo importante.”

Além disso, Lucca aponta que é importante oferecer amparo psicológico adequado para as pessoas trans e realizar rodas de conversa principalmente nos cursos da área da saúde. “É onde nós pessoas trans acabamos encontrando falhas no atendimento. Eu preciso ir para Santa Maria para ser atendido pelos profissionais da saúde de lá. Aqui em Santiago até o momento não encontrei nenhum profissional realmente bom.”

Outro ponto destacado por ambos como medida inclusiva é o entendimento sobre o uso do banheiro por parte de pessoas trans. “Naturalizar o uso de banheiros por quem se identifica com o gênero masculino ou feminino. Seria bom ter um banheiro com placa que mostre que ali é para todos”, sugere Lucca.

“A questão do banheiro, da escola ou da universidade, não ofertar um espaço que seja inclusivo, um banheiro para todos os gêneros. A gente entende que se as identidades são múltiplas, elas não cabem no banheiro masculino ou no banheiro feminino apenas. Há algumas destas identidades que não vão entrar nem em um, nem em outro. As literaturas que tratam do assunto tratam os banheiros para todos os gêneros como elementos inclusivos nos espaços educacionais. Os espaços são identificados e vai quem quer. É uma forma de respeitar as singularidades”, explica o professor doutor.

Nome social

“Com 18 anos comecei a entender realmente o que era ser um homem trans, mas desde muitos anos antes eu já me via diferente no espelho. Após os 18 anos, comecei a transição, mas com 19 anos comecei a fazer uso de hormônio. Retifiquei meus documentos em 2019, antes de começar o tratamento hormonal. Coloquei na certidão o nome Luh porque eu ainda não me encaixava a um nome masculino, não me sentia parte de um nome. Coloquei este por ser neutro, sem gênero. Então em todos os documentos o meu nome está Luh Moraes Gomes. Do ano passado para cá tomei propriedade do nome Lucca, nome social com o qual me apresento”, conta Lucca.

“Há dois anos o Supremo Tribunal Federal (STF) entende que as pessoas trans, travestis, que se identificam e querem modificar seu documento civil, podem fazer isso sem a necessidade de um laudo psicológico, direto no cartório. Esse é um entendimento que já elimina várias barreiras porque antes tinha que ter, digamos assim, a aprovação de um psicólogo dizendo que a pessoa era trans, além da assinatura com o carimbo do psicólogo, psiquiatra. Hoje a pessoa maior de idade pode fazer a retifica dos documentos e mudar o nome e gênero direto no cartório, sem precisar da burocracia que tinha antes e era fator de exclusão”, explica o professor doutor.

A transformação pelo diploma

Para Lucca, concluir a graduação lhe conferiu respeito e admiração. “Cada fase que passei durante e dentro da universidade agregou demais na minha construção como pessoa. Fui me tornando um cara mais responsável, aprendi a valorizar as pequenas coisas, a dar atenção aos que precisam. Isso não veio só pelas disciplinas, mas sim por estar em um ambiente com pessoas diferentes e de outras regiões. Essa integração é importante para a evolução e para o amadurecimento como ser humano. Além disso, a contribuição da universidade neste processo, está em inserir pessoas trans em projetos na comunidade, abrir as portas para a gente. Para isso é preciso ir atrás delas, trazer para perto e acolher.”

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